A VIAGEM
A família Coutinho estava completa, exceto por uma tia avó do interior, um tio morto, um primo internado e muitos outros que, muitas vezes, inventavam desculpas para não rever os parentes, coisa que o jovem Marcelo desejara ter feito antes de comparecer naquele lugar.
Marcelo estava
encostado em um sofá branco com almofadas vermelhas, repletas de
bordados, principalmente flores. O rapaz estava ao lado de sua mala, uma
azul das grandes, com milhares de bolsos a mostra. Não estava sentado
sozinho, pois seu avô, Euclides, cochilava fortemente, assoprando
levemente à cada ronco seus cabelos brancos e lisos, semelhantes à um
índio, exceto pelos olhos azuis, que eram realçados por sua pele escura e
enrugada.
Na frente do jovem
encontrava-se uma bela parede vermelha inundada por relógios, que
estavam todos perfeitamente aliados e regulados, dando um ar de
estranheza para a pequena sala, onde malas e pessoas estavam acumuladas
no chão, o motivo de diversos colchões estarem forrando o chão envolta
do sofá, quase selando a porta, pois a mesma tinha um espaço mínimo para
fazer seu movimento. Poucos tiveram o privilégio de não dormir no chão,
apenas o avô, por sua velhice, a tia, que estava dormindo no único
quarto da casa, por sua joanete e Marcelo, por seu problema no joelho, o
qual agradecia o santo futebol naquele momento.
Marcelo era o único
que não caíra em um sono profundo, pois o mesmo estava pensativo e não
conseguia dormir com tantas pessoas roncando no mesmo recinto. Ele
começou a perceber a furada em que metera-se a partir dali, ficando
temeroso com o futuro da família e dessa viagem insana que seu pai havia
planejado. Iriam sair três horas da manhã, usando dez carros, com cinco
membros da família em cada veículo, indo assim para um lugar no
interior do estado, pois seu pai ouvira no trabalho que havia nesta
cidade um presépio gigante que tomava quatro casas de 120 m ². Sim, onde
iriam dormir tantas pessoas? Bem, segundo a suspeita falácia havia um
hotel no tal local, sendo ele absurdamente barato.
Marcelo não
acreditou em nenhuma palavra deste relato que seu pai contara, mas o
mesmo não deu-lhe ouvidos, apenas fez todos os preparativos para a
viagem, chamou toda a família, que cegamente acreditaram nas palavras do
homem grisalho, talvez por estarem animados de não ter de passar as
festas na casa do velho Euclides, que gostava de ligar o forró nas
alturas e sempre impedia qualquer um de tocar em seu fogão, sendo ele o
cozinheiro, por isso ninguém possuía boas lembranças alimentícias da
maioria dos natais, além de suas longas histórias sem fundamento.
O rapaz poderia
ter mentido, inventado uma desculpa ou qualquer coisa para evitar sua
presença nesta presepada, acreditava que este presépio e o hotel eram
uma falácia bem contada, na qual todos acreditavam cegamente, cada qual
com seu motivo, mas provavelmente por pura ingenuidade, logo a hora
estaria chegando. Pegou seu celular touch scream para checar a
hora, mesmo com o grande número de relógios na parede, pois o habito era
frequente e inevitável. Espantou-se com a hora que viu, 02:59... logo
tudo começaria, deveria acordar todos.
Ele bateu
palmas ribombadas, que não surtiram efeito sobre ninguém, pois todos
possuíam um sono extremamente pesado, assim como o rapaz. Intrigado com
as semelhanças de toda a família, gritou tão alto quanto uma maritaca, o
que pareceu funcionar, porque logo o tio José levantou o rosto, tia
Ana, o primo Jorisval, a prima Viviane e logo todos os familiares, que
ameaçaram questionar Marcelo, mas calaram-se ao olhar os relógios.
Euclides olhou seriamente para o jovem, falando com sua voz rouca e falha:
- Vá chamar sua tia, menino!- Disse o senhor pausadamente.
- Vô, eu não consigo andar direito, por causa do joelho...- Respondeu o jovem.
- Vá mancando! Vish, o bicho é molhe como o pai!- Chantageou com as palavras mais odiadas pelo menino.
- Tudo bem.
- Vá chamar sua tia, menino!- Disse o senhor pausadamente.
- Vô, eu não consigo andar direito, por causa do joelho...- Respondeu o jovem.
- Vá mancando! Vish, o bicho é molhe como o pai!- Chantageou com as palavras mais odiadas pelo menino.
- Tudo bem.
Marcelo sempre
ouviu aquelas palavras, que quase sempre foram usadas como chantagem
por seu avô, coisa que o rapaz suspeitava ser uma palavra feita e
definida pelo senhor, pois certa vez espiava seus primos e ouvira a
mesma frase. Mesmo assim, por algum motivo, ainda considerava as oito
palavras ofensas.
O rapaz apoiou
seus braços, um no braço do sofá, o outro na mala, forçando seu corpo
para frente determinado, mas relaxou novamente ao ver a senhora
gorducha, ruiva e de olheiras profundas surgir na caótica floresta de
colchões, que foi recebida por um cachorro saltitante branco e peludo. A
senhora envolveu o cachorro em um abraço, levando grandes lambidas em
seu rosto, no qual residia um estranho sorriso não compreendido por
Marcelo.
Quando todos
estavam levantados, um homem de cabelos pretos, com pequenos pontos
brancos, rosto gorducho, nariz achatado e uma estranha blusa de couro
chamou a atenção de todos. Aquele era seu pai, o homem que caíra na
falácia com o resto da família. Ele refez toda a formação, na qual eles,
Marcelo, o pai, tia Alice, primo Jorisval e avô Euclides, liderariam o
longo comboio de dez carros, enfatizando para todos permanecerem atentos
e cautelosos, pois caso algum deles perca-se não haveria forma de
contato, pois os celulares não teriam sinal.
Marcelo
revirou os olhos discretamente, por acreditar que essa formação só
causaria problemas, pois seu pai, Manuel, não deveria ser o único
conhecedor do caminho, mas ninguém ouvira-lhe novamente, afinal, Manuel
não precisava de sua ajuda, já havia planejado tudo. Cansado daquilo,
levantou-se com dificuldade indo ao banheiro.
~...~
As pessoas
foram saindo aos poucos, deixando os colchões vazios espalhados pela
sala, exceto por um único que estava encostado no sofá, em pé. Marcelo
saiu do banheiro, percebendo sua solidão naquele lugar, e com pesar,
dirigiu-se à porta.
A grande
fileira de carros que localizava-se na frente do portão de grades
brancas da casa baixinha estava toda ocupada por seus familiares, exceto
pelo carro da frente, que tinha Manuel segurando a porta do motorista.
Marcelo olhou debilmente, assustado com a rapidez de tudo, questionando o
tempo que ficara no banheiro. Logo foi apressado por seu pai, pois
aproximou-se para pegar a mala e colocar no porta-malas.
Manuel serviu
de apoio para o rapaz, que chegou no carro rapidamente, sentando no
banco de trás de um Astra branco, onde estava sentada tia avó Alice e
seu cachorro na janela direita e primo Jorisval, um menino de dez anos,
alto para sua idade, semelhante ao avô, exceto pelos olhos que eram
pretos, no meio com o cinto afivelado. Marcelo acomodou sua perna,
apertando o cinto inseguro.
Marcelo olhou
para seu primo, sua tia e o cachorro, ficando temeroso, pois aquela
viagem seria longa, mas quase ficou depressivo ao ver seu avô
encarando-o do banco da frente... Em que furada estava entrando...
Quando o
primeiro ronco foi ouvido, multiplicaram-se por dez, pois todos os
carros fizeram o mesmo. Tal som fez Marcelo questionar sua decisão, mas
não adiantaria mudar de ideia, a viagem iria acontecer de qualquer jeito, só teria que aceitar e ser paciente.
~...~